quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A validade jurídica dos documentos digitais


João Agnaldo Donizeti Gandini, Diana Paola da Silva Salomão e Cristiane Jacob

João Agnaldo Donizeti Gandini, Juiz de Direito titular da 9ª Vara Cível da Comarca de Ribeirão Preto
Luciana Rasteli Rangel, bacharel em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto e especialista em Direito Processual Civil.
Diana Paola da Silva Salomão, professora e advogada militante na Comarca de Ribeirão Preto.
Cristiane Jacob - Bacharelanda em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto.

Inserido em 1/8/2001

Parte integrante da Edição no 1

Código da publicação: 37




Sumário: 1. Introdução. 2. O documento digital. 2.1 Conceito de documento digital. 2.2 Evolução do documento digital. 3. As condições básicas para o alcance da validade jurídica dos documentos digitais. 4. Arquivos digitais como instrumento e meio de prova. 5. As vantagens e desvantagens do uso dos documentos digitais. 6. O tratamento legislativo em outros países. 7. A regulamentação dos documentos digitais no Brasil. 8. Considerações finais.



1. Introdução



O presente trabalho tem por finalidade analisar a possibilidade de atribuirmos validade jurídica aos documentos digitais.

Dentre as diversas questões em torno da informática jurídica, optamos por discorrer acerca dos documentos digitais e de sua validade perante o Direito brasileiro, bem como de seu desenvolvimento em ordenamentos jurídicos estrangeiros.

Com o uso dos meios eletrônicos de comunicação, utilizando como suporte principalmente a Internet, houve uma expansão comercial que não conhece fronteiras territoriais - o comércio eletrônico.

Sabemos que muitos ordenamentos jurídicos não estavam preparados para lidar com esse fenômeno, pois a maioria dos Estados preceitua regras de validade dos negócios jurídicos baseados em documentos escritos e memorizados sobre o papel. Assim, com essa nova forma de negociar e "assinar" alguns questionam a natureza jurídica, os efeitos, a segurança e, principalmente, a validade dos documentos digitais, diante da inicial insegurança do Direito e da sociedade perante eles.

A evolução da tecnologia aplicada à área da informática e telemática é visível nas sociedades globalizadas. Por isso, não podemos deixar de analisar as suas dimensões perante o Direito.

A falta de regulamentação dos documentos digitais representa hoje um dos maiores empecilhos ao desenvolvimento do comércio eletrônico. Por essa razão, os países precisam reformular suas leis, adequando-as à nova realidade, em busca de dar amparo legal e igualitário ao uso tanto da documentação tradicional quanto da digital.

As futuras legislações devem garantir, sim, a validade dos documentos digitais, e não repudiá-los, pois somente assim o Direito garantirá à sociedade global segurança total de que os negócios foram realmente concretizados, possuindo, desta forma, validade jurídica.

Admitindo-se a validade dos documentos digitais pelo ordenamento jurídico, não haverá como uma das partes se esquivar das obrigações por ela assumidas no negócio, alegando que este não foi efetivado, em razão do instrumento utilizado. Assim, se houver uma disputa judicial, a sociedade se sentirá segura de que as cláusulas que regem o negócio serão uma garantia para as partes.

O receio que existe ainda hoje de estabelecer pactos via documentos digitais, como é o caso da Internet, faz com que juristas e técnicos passem a se preocupar com a garantia da segurança e validade jurídica de tais negócios. De tal modo, ferramentas de apoio vão sendo criadas com a finalidade de impedir ataques às redes e também vão surgindo sistemas protetores contra operações ilegais.

As ferramentas mencionadas se estendem desde a criação de leis específicas, até recursos técnicos, que impeçam as possíveis fraudes, não deixando de mencionar o sistema de criptografia, que é amplamente utilizado.

Apesar de alguns autores entenderem que o documento digital não pode ser considerado válido, por não possuir forma exigida em lei, qual seja a forma escrita, ousamos divergir pelo fato de que contratos de várias espécies podem ser realizados e, da mesma forma, considerados válidos, quando celebrados até mesmo por telefone ou de forma oral. Com esse entendimento, questionamos a respeito da razão pela qual tais documentos digitais não podem ser equiparados aos documentos escritos e considerados válidos.

Se a preocupação que existe é quanto à segurança dos documentos digitais, com uma nova legislação, como foi o caso de outros países, tais como os Estados Unidos e a Itália, é certo que a realidade social se torna outra, pois se conferidos pela lei mecanismos que garantam a segurança nas transações, logicamente esses documentos terão como atributo a validade jurídica, principalmente como meio de prova de fato jurídico.

A Lei modelo da Uncitral estabelece que os registros eletrônicos, para que recebam o mesmo nível de reconhecimento legal, devem satisfazer, no mínimo, o exato grau de segurança que os documentos em papel oferecem, o que deve ser alcançado por uma série de recursos técnicos. Em síntese, podemos dizer que essa lei, modelo para todos os países, estabelece uma série de requisitos que permitem que um documento digital tenha função equivalente ao documento escrito, assinado e original.

2. O documento digital

2.1. Conceito de documento digital

O documento digital pode ser denominado como documento eletrônico ou até mesmo como documento informático, mas todos com o mesmo sentido, sendo todo documento produzido por meio do uso do computador.

Defini-lo não é tarefa das mais fáceis, visto tratar-se de tema que envolve dados técnicos, bem como uma tecnologia nova, crescente e mutável. Torna-se difícil defini-lo com exatidão, por estar ele vinculado necessariamente a tais fatores. Da mesma forma, não podemos olvidar que o documento digital não pode ser abordado de forma estática, pois está sempre em evolução, assim como a técnica e a tecnologia.

Podemos conceituar o documento eletrônico como sendo o que se encontra memorizado em forma digital, não perceptível para os seres humanos senão mediante intermedição de um computador. Nada mais é do que uma seqüência de bits, que por meio de um programa computacional, mostrar-nos-á um fato.

Para que possamos entender melhor esse conceito, Marcacini nos explica de forma elucidativa:

A assimilação desse conceito de documento eletrônico exige um certo grau de abstração. Trilhando na mesma linha de raciocínio de um dos gurus da informática moderna, Nicholas Negroponte, pode-se dizer que experimentamos hoje um mundo virtual onde, no lugar de átomos, agora temos que nos acostumar com uma realidade de coisas formadas tanto por átomos como por bits. O documento tradicional, em nível microscópico, não é outra coisa senão uma infinidade de átomos que, juntos, formam uma coisa que, captada pelos nossos sentidos, nos transmite uma informação. O documento eletrônico, então, é uma das seqüências de bits que, captada pelos nossos sentidos com o uso de um computador e um software específico, nos transmite uma informação.

Podemos conceituar documento digital como sendo uma representação da realidade, podendo apresentar-se em forma textual, gráfica, sonora ou outra admitida pela técnica, tendo como base qualquer suporte que possa garantir sua certeza e imutabilidade, e que possa ser atribuído a um sujeito determinado.

2.2 Evolução do documento digital

De acordo com dados históricos, podemos verificar que o Direito não acompanha imediatamente a evolução social, econômica e, também, a tecnológica, estando sempre retardatário perante os acontecimentos da sociedade.

O impacto revolucionário da informação está apenas começando a ser notado; desta forma, em se tratando de documento eletrônico, a ordem jurídica nacional não se ajustou à nova realidade existente em nível mundial e, inclusive, em nosso País.

O maior pensador contemporâneo do mundo dos negócios, Peter Drucker, sintetiza que:

A Revolução da Informação se encontra no ponto em que a Revolução Industrial estava no início da década de 1820, cerca de 40 anos depois de a máquina a vapor se aperfeiçoar por James Watt. E a máquina a vapor era para a Revolução Industrial aquilo que o computador vem sendo pra a Revolução da Informação.

Augusto T. R. Marcacini enfoca as mudanças sociais decorrentes da revolução tecnológica:

O progresso da ciência sempre traz consigo uma mudança nos hábitos e comportamentos das pessoas. E destes novos relacionamentos humanos surgem novas relações jurídicas, ou novos fatos jurídicos a serem objeto de regulação por parte do Direito. Nunca, porém, o avanço da tecnologia se fez tão presente no cotidiano como ocorre nos dias de hoje, com a informática.

Sabemos que o Direito não pode se isolar do ambiente em que vigora; assim sendo, se uma norma positiva não é alterada para corresponder à realidade social e econômica em que vivemos, o magistrado deve adaptar o texto preciso às condições emergentes e imprevistas.

Rosana Ribeiro da Silva entende que as sociedades são dinâmicas, ou seja, evoluem continuamente com o passar do tempo, de forma que o Direito, quando visa a regular os hábitos e atividades sociais, deve necessariamente acompanhar esta evolução, de forma a alterar ou dar novas interpretações às regras jurídicas existentes. Como compete ao Direito regular as relações entre indivíduos, dando-lhes segurança e estabilidade nas relações jurídicas que estabelecem, também a ele é conferida a regulamentação das relações que se originam das facilidades proporcionadas pela Internet.

A razão da necessidade de criação de novas regras que regulamentem o documento eletrônico se dá porque a informação está intimamente ligada à documentação, que aos poucos deixa de ser escrita para assumir a forma digital. Ante o volume e a necessidade de recuperação e disseminação das informações, o uso do papel começa a nos dar mostras de suas limitações.

Pesquisas nos informam que os documentos impressos estão sendo gradualmente substituídos por arquivos eletrônicos, mesmo diante do fato de que por mais de quinhentos anos todos os conhecimentos humanos e as informações foram armazenados em documentos de papel.

Segundo Bill Gates, as companhias de sucesso no futuro serão as que utilizarem ferramentas digitais para reinventar sua maneira de trabalhar, convertendo os documentos de papel em arquivos digitais. A respeito, o mesmo autor assegura que:

O papel estará conosco infinitamente, mas sua importância como meio de encontrar, preservar e distribuir informação já está diminuindo(...) À medida que os documentos ficarem mais flexíveis, mais ricos de conteúdo de multimídia e menos presos ao papel, as formas de colaboração e comunicação entre as pessoas se tornarão mais ricas e menos amarradas ao local onde estão instaladas.

Temos de ter consciência de que o amadurecimento das tecnologias de digitalização dos documentos deve reduzir muito o uso do papel, mas dificilmente irá eliminá-lo.

O documento eletrônico está sendo amplamente utilizado principalmente na rede mundial conhecida por Internet, que possibilita a mobilidade das informações necessárias para que o comércio eletrônico se desenvolva e gere inúmeras transações, efetivando os modernos negócios jurídicos.

Os recursos eletrônicos, em alguns casos, suprimem as reais limitações verificadas com o uso da documentação tradicional, que é o papel, tornando o documento mais seguro, confiável e seu armazenamento e recuperação mais bem administrados, bem como sua transmissão eficiente, rápida e segura.

O trabalho com documentos digitais tende a ser mais fácil do que com o papel, permitindo que possamos transmitir informações de forma instantânea e recebê-la de volta quase que de imediato. Por isso, as organizações estão substituindo o papel pelo armazenamento eletrônico de documentos em redes, permitindo cada vez mais agilidade na obtenção da informação.

A diferença básica entre o documento tradicional e o documento eletrônico consiste na sua forma de materialização.

O documento tradicional está descrito em nosso ordenamento jurídico. Assim, por sua materialidade e reconhecimento pelo Direito garante a vontade das partes, bem como a sua inalterabilidade.

Nosso país está começando a seguir a direção que muitos outros países vêm seguindo, que é a busca da atualização legislativa em relação ao desenvolvimento tecnológico da humanidade, com uma legislação moderna e compatível com nossas experiências cotidianas, visando a proteger nossa sociedade das inúmeras e novas conseqüências jurídicas oriundas do progresso conquistado.

3. Validade jurídica dos documentos digitais.

Um documento eletrônico não pode ser assinado no modo tradicional, pelo qual o autor se identifica. Desta forma, é impossível que ele tenha a mesma forma que um documento tradicional, mas nada impede que determinados mecanismos informáticos possam trazer aos documentos digitais as três funções fundamentais dos documentos tradicionais, que são a função identificativa, a declarativa e a probatória.

Costuma-se atribuir aos documentos eletrônicos as seguintes características: volaticidade, alterabilidade e fácil falsificação.

Os documentos digitais, mesmo com todas estas implicações, podem ter validade jurídica, desde que preencham determinados requisitos, que são os mesmos exigidos para os documentos tradicionais; contudo, aqueles continuarão diferenciando-se destes pela forma prática de seu suprimento e verificação. Os requisitos acima mencionados são a integridade, a autenticidade e a tempestividade.

Entende-se por integridade a estimativa que se faz se um documento foi ou não modificado após sua concepção. Será verificada a existência ou não de contrafação (rasuras, cancelamentos, escritos inseridos posteriormente etc). Portanto, a integridade diz respeito ao conteúdo, às informações inseridas no documento.

A autenticidade é a verificação de sua proveniência subjetiva, determinando-se com certeza quem é seu autor. No documento em papel, o que demonstra a autoria geralmente é a assinatura. Naqueles documentos que não se costuma assinar, serão feitas análises grafológicas.

Quanto à tempestividade, é ela que garante a confiabilidade probatória do documento analisado. Será conferida pela verificação das formas de impressão, do tipo de tinta, os quais deverão estar compatíveis com a tecnologia disponível quando da feitura do documento.

César Viterbo Santolim enfoca a questão da validade jurídica dos documentos eletrônicos, mais especificamente com relação aos contratos realizados por computador, da seguinte forma:

Para que a manifestação de vontade seja levada a efeito por um meio eletrônico, é fundamental que estejam atendidos dois requisitos de validade, sem os quais tal procedimento será inadmissível: a) o meio utilizado não deve ser adulterável sem deixar vestígios, e b) deve ser possível a identificação do(s) emitente(s) da(s) vontade(s) registrada(s).

Primeiramente, tem que haver condições para se demonstrar a "paternidade" de determinado documento eletrônico, para somente depois discutir acerca de seu valor jurídico e sobre a possibilidade de equiparação ao documento tradicional.

Num primeiro plano temos de analisar se esse documento possui integridade, evitando, assim, que haja adulterações não detectáveis. Posteriormente, deve ser um documento autêntico; isso significa que devem necessariamente estar presentes mecanismos aptos a identificar seu autor e sua proveniência, para que, dessa forma, garanta o seu não repúdio. Por último, a data atribuída aos documentos eletrônicos é de suma importância, pois é assim que saberemos se há tempestividade, possibilitando sobremaneira a almejada segurança.

No âmbito jurídico, o maior obstáculo em aceitar um documento, petição ou certidão, enviado por computador ou até mesmo por fax, é a verificação da assinatura, ou seja, é quanto à segurança na identificação do autor.

Destarte, podemos considerar que a validade jurídica dos documentos digitais dependerá da prévia garantia de sua segurança, pois primeiramente a lei deverá atribuir a tais documentos mecanismos que garantam a segurança da autoria, da autenticidade e da tempestividade, para, assim, dar-lhes validade jurídica.

4. Arquivos digitais como instrumento e meio de prova.

Ao tratarmos da validade dos documentos digitais, não podemos deixar de abordar especificamente o seu caráter probatório, pois os grandes questionamentos jurídicos incidentes sobre tais documentos estão exatamente em sua validade como meio e instrumento de prova, ou seja, se os documentos digitais são aptos a provar a existência de um determinado fato e, ainda, provar a sua autoria.

Segundo ensinamentos de Davi Monteiro Diniz , os arquivos digitais não precisam necessariamente ser considerados como documentos para que sejam aceitos no processo como meio de convencimento do juízo, isto é, como meio e instrumento de prova. Devem eles, sim, ser inseridos na categoria geral chamada de provas atípicas.

Porém, não há como se negar que o documento digital ainda causa um abalo na certeza quanto à integridade de seu conteúdo e quanto à sua autoria, o que, conseqüentemente, gera uma fragilidade diante de uma fundamentada impugnação.

Não podemos olvidar que quando se afere o valor probatório de um documento digital, avalia-se, também, a idoneidade dos instrumentos que serão utilizados para a leitura do conteúdo daqueles (hardwares e softwares).

Com relação às regras insertas em nosso ordenamento jurídico, existem algumas questões que devem ser ressaltadas. A primeira é quanto à obrigatoriedade, pelo artigo 366 do Código de Processo Civil, de que a prova dos fatos jurídicos seja feita obrigatoriamente por documentos. Partindo dessa premissa, restará ao julgador a decisão de qualificar ou não o documento digital como um documento validamente inserido nas regras processuais para que, assim, se possa utilizá-lo como meio de prova de um fato jurídico, dentro do processo.

A segunda questão a ser analisada é quanto aos critérios selecionados pela lei para dar certeza jurídica aos documentos, critérios esses estritamente calcados no interesse público; daí terem sido protegidos inclusive no âmbito do Direito Criminal, como é o caso dos crimes tipificados nos artigos 293 a 305 do Código Penal.

Podemos, então, concluir que os elementos autoria, integridade de conteúdo e corporalidade do documento são relevantes para o Direito e, por conseqüência, para a sociedade de um modo geral, por trazerem informações diretas sobre os limites dos direitos de seus proprietários. Da mesma forma, o Direito, visando a proteger a autenticidade de tais informações, protege o documento em si, sempre prezando o interesse público na segurança das relações jurídicas, bem como na administração da justiça.

Com relação às assinaturas, estas são consideradas pelas normas pátrias como sendo meio geral de imputação de autoria do documento. Mas, em determinados casos, como os livros mercantis e assentos domésticos, a lei faculta o seu lançamento (artigo 371, do CPC, e seus incisos), sendo que a prova, nesse caso, dependerá de perícia grafotécnica.

Pela lei, cessará a fé do documento se a integridade de seu conteúdo for violada, mediante alteração, ou se diante da contestação de sua assinatura, não se conseguir provar a sua veracidade (artigos 387, II, e 388, ambos do CPC).

Por isso, podemos notar que as regras processuais que protegem os documentos são de caráter público, ou seja, a integridade destes é considerada bem público indisponível, não integrando os poderes patrimoniais dos particulares (direitos não disponíveis).

Reportando-nos ao documento digital, conferimos na doutrina de Davi Monteiro Diniz uma posição bastante prática. Assevera o ilustre jurista que o julgador, quando da composição de uma determinada lide e de acordo com a natureza dos interesses que ali estejam sendo discutidos, poderá atribuir a um arquivo digital os efeitos probatórios de um documento particular, caso a lei não exija outros requisitos formais para seu aperfeiçoamento. Ainda, tal efeito probatório poderá ser particularmente reforçado pela aquiescência das partes, emanada nos autos ou em outro instrumento negocial, desde que não esteja presente nenhuma desigualdade leonina.

Questão que vem se tornando comum na doutrina e na jurisprudência é com relação ao comércio eletrônico, que vem sendo largamente praticado principalmente por meio da Internet. Nesta rede mundial, vários arquivos digitais são utilizados para a celebração de negócios jurídicos contratuais.

Quando a lei exige para o negócio jurídico determinada forma não suportada pelos meios eletrônicos, há aí fortes empecilhos legais para que o documento digital seja considerado como prova do negócio firmado. Mas, em outras negociações que admitem a forma livre, a comunicação da proposta e da aceitação entre contraentes capazes e legítimos, por documentos digitais, é plenamente adequável às normas pátrias, não restando, destarte, qualquer óbice para que tais documentos sejam utilizados com tal escopo.

Com relação à sua natureza probatória, como já exposto acima, o Direito e a sociedade ainda não "confiam" plenamente nos documentos digitais, exigindo como prova do negócio firmado por tais arquivos eletrônicos outros elementos de prova que o confirmem, tais como a confirmação do pagamento da fatura do cartão de crédito, pela financiadora, ou comprovantes de envio da mercadoria comprada.

Porém, há determinadas espécies de contratos em que a obtenção de meios indiretos de prova não é uma boa solução, por acarretar uma lentidão contrária aos interesses dos contraentes. Para estes, a fim de garantir o reconhecimento da autoria e da integridade do conteúdo das declarações de vontade insertas no documento digital, está sendo utilizada a nova tecnologia denominada assinatura digital. Assim, as assinaturas digitais podem ser consideradas como meio direto de prova dos contratos entre ausentes, celebrados por documento digital.

Essa "assinatura" tem função de lacrar o conteúdo do documento, fazendo com que este permaneça íntegro, ou se for minimamente alterado, que isso possa ser constatado; também garante a autenticidade e a tempestividade.

Bill Gates explica o fenômeno da assinatura digital da seguinte forma:

Quando você mandar uma mensagem pela estrada da informação, ela será "assinada" pelo seu computador, ou outro dispositivo de informação, com uma assinatura digital que só você será capaz de aplicar, e será codificada de forma que só seu destinatário real será capaz de decifrá-la. Você enviará uma mensagem, que pode ser informação de qualquer tipo, inclusive voz, vídeo ou dinheiro digital. O destinatário poderá ter certeza quase absoluta de que a mensagem é mesmo sua, que foi enviada exatamente na hora indicada, que não foi nem minimamente alterada e que outros não podem decifrá-la.

Importante salientar que a assinatura digital não tem por escopo tornar a mensagem ilegível, visto que ela em si não é encriptada, mas sim apenas é acrescentada à mensagem eletrônica, o que a mantém ilesa. Assim, podemos dizer que sua função precípua é a de elevar o estado de segurança do documento assinado.

Ao analisarmos os documentos tradicionais, podemos constatar que os requisitos essenciais que lhe conferem efeito probatório estão de modo notável apostos em um suporte material. Nos documentos eletrônicos não há a necessidade obrigatória desse suporte material, pois sua própria substância ou conteúdo já o comprovam.

A autenticidade pode ser garantida pela chave codificadora, como nos ensina Bill Gates:

A chave codificadora permite mais do que privacidade. Ela pode também garantir a autenticidade de um documento, porque a chave privada pode ser usada para codificar uma mensagem que só a chave pública pode decodificar. Funciona assim: se eu tenho uma informação que quero assinar antes de mandar de volta para você, meu computador usa minha chave privada para codificá-la. Agora a mensagem só pode ser lida se minha chave pública-que você e todo mundo conhece - for usada para decifrá-la. Essa mensagem é com certeza minha, pois ninguém mais tem a chave privada capaz de codifica-la dessa forma.

Diante de tudo, podemos considerar que todo o corpo normativo que busca combater, com eficácia, eventuais tentativas de fraude ou abuso poderá ser considerado como inaplicável em determinadas situações que envolvam os documentos digitais, em razão da inadequação objetiva dos instrumentos jurídicos acima apresentados.

5. As vantagens e desvantagens do uso dos documentos digitais

Nesse tópico, apresentaremos uma breve síntese sobre as vantagens e desvantagens do uso dos documentos digitais.

Inúmeras são as vantagens oferecidas pelo uso dos documentos digitais em relação aos documentos tradicionais.

Vantagens:

· Maior celeridade em sua elaboração, bem como redução de custos de impressão;

· Arquivamento de forma simples e fácil recuperação de dados;

· Alta capacidade de armazenamento, sendo seu custo reduzido;

· Retorno às exigências ecológicas e de tutela do meio ambiente;

· Duplicabilidade imediata, não havendo a figura da cópia;

· Transmissão imediata;

· Dificuldade de fraude, mediante mecanismos que a impeçam;

· Capacidade de resistência ao envelhecimento e deterioração.

Douglas Leme de Riso salienta acerca das vantagens dos documentos eletrônicos em face à preservação da natureza:

Atrelado aos objetivos da lei americana ou qualquer outro diploma legal de países do globo, atrevemos a citar, também o apelo ambiental positivo provocado pelo uso eletrônico de documentos: a preservação da fauna e flora do planeta, que irá, com certeza, minimizar desmatamentos com a finalidade de abastecimento da indústria de papel e celulose.

Os documentos tradicionais, apostos em papel, não mais correspondem às necessidades rápidas de agilidade na circulação das informações. São evidentes as suas limitações, nos dias atuais, seja no que se refere à simples conservação, transmissibilidade ou segurança.

Como sabemos, o documento tradicional é feito por meio corpóreo, isto é, lançado no papel em forma escrita e assinado pelas partes. Já o documento eletrônico tem várias formas, não podendo ser classificado como escrito. Ele pode ser representado por desenho, som, vídeo ou tudo aquilo que representar um fato e que esteja armazenado em um arquivo digital.

Desvantagens

Uma das principais desvantagens do documento digital é a ligação que ele possui com a tecnologia, computadores e tudo mais que o envolve. A necessidade de intermediação é um dos pontos fracos dessa forma de documentação, uma vez que para que possamos ter conhecimento de determinada informação que se encontra memorizada em forma de bits, faz-se mister a intermediação com o auxilio de um computador.

Também quanto à sua leitura, para que possa ser visualizado o conteúdo de um documento digital, devemos submetê-lo ao computador para a decifragem.

Com o uso constante da informática no quotidiano, mudanças em nossos hábitos serão verificadas, mostrando-nos que somos capazes de nos adequar às situações novas, bem como à tecnologia que a cada dia se aperfeiçoa.

Uma questão que deve ser considerada neste tópico é a insegurança, presente na sociedade, na realização de transações pela Internet. Se houvesse uma campanha nacional de informação sobre o bom uso dos meios informáticos, elaborada por todos os interessados no comércio eletrônico, esse obstáculo poderia ser superado.

6. O tratamento legislativo em outros países

Muitos países, nos últimos anos, criaram normas que disciplinam a validade jurídica dos documentos digitais, dando-lhes, para isso, a segurança de sua autoria e integridade.

Porém, cada país preferiu regular a matéria de sua maneira, visto que alguns simplesmente criaram mecanismos certificadores das assinaturas, enquanto outros, além disso, trataram da qualificação legal dos arquivos digitalmente assinados, atribuindo-lhes, assim, a qualidade documental.

Douglas Leme de Riso aponta o posicionamento da legislação dos Estados Unidos sobre a validade jurídica dos documentos digitais:

Nesse sentido, o governo americano em ato pioneiro e corajoso, por meio de seu presidente Bill Clinton, sancionou recentemente lei sobre assinatura eletrônica com vistas a: (i) estimular o uso deste meio de comunicação, mesmo conhecendo as dificuldades em outorgar às transações desta espécie, a devida segurança; (ii) reduzir drasticamente as despesas administrativas; e (iii) reduzir o tempo consumido nas transações.

Vários estados federados dos Estados Unidos já dispuseram sobre a matéria, como Utah, que atribuiu a mesma validade jurídica tanto aos documentos assinados digitalmente quanto aos assinados manualmente. Diferentemente, o Estado da Califórnia subordinou a validade dos documentos digitais à aquiescência daqueles que o produzirem.

Já em outros países, como a Itália, pioneira em seu continente, legislou-se sobre a matéria atribuindo-se a mesma validade jurídica dos documentos assinados manualmente aos documentos com assinaturas digitais.

Na Alemanha, a legislação limitou-se a definir a estrutura necessária ao uso das assinaturas digitais, não lhes atribuindo a mesma validade legal que o documento assinado manualmente.

Em artigo jurídico, Ângela Bittencourt dispõe sobre a regulamentação dos documentos eletrônicos na Alemanha:

Na mesma esteira, a Alemanha já tem a sua" Informations Und Kommunikationsdienste Gesetz Iukdg", lei federal que estabelece condições gerais para o uso das assinaturas digitais, tanto ao seu aspecto de segurança e se baseia no mesmo sistema de criptografia. E assim,outros países,como a Itália e a Bélgica, adotaram procedimentos semelhantes.

A Argentina, pelo Decreto nº 427/98, criou um programa de uso das assinaturas digitais no âmbito da administração pública; porém, para serem utilizadas somente em atos internos que não produzam efeitos jurídicos "individuales en forma directa".

A Lei Modelo expedida pela UNCITRAL, da ONU, que visa a promover a uniformidade das regras sobre o tema entre todos os países, apresenta alguns pontos interessantes a respeito da validade dos documentos digitais.

Em seu artigo 1º, a Lei Modelo trata do reconhecimento jurídico dos contratos eletrônicos, não negando a sua validade e força obrigatória, como um contrato firmado na forma tradicional. No artigo 6º, a Lei discorre a respeito da necessidade do documento digital apresentar-se na forma escrita, quando a lei exigir a forma escrita para aquele negócio, além de ter que permanecer disponível e acessível para consultas posteriores.

O artigo 7º dispõe sobre a assinatura dos contratos eletrônicos, nos quais a assinatura manual, quando exigida pela lei, poderá ser substituída por outros métodos eficazes de identificação das partes contratantes, desde que confiáveis e apropriados para as finalidades do negócio jurídico.

Com relação à formação do contrato eletrônico, a Lei Modelo dá validade à oferta e à aceitação, expressas por meios eletrônicos, desde que as partes não tenham convencionado de maneira diversa.

Ainda, a mesma Lei trata do tempo e lugar de envio e recepção de uma mensagem eletrônica, determinando que se as partes não convencionarem de maneira diversa, a mensagem será considerada enviada quando ela entra em um sistema de informação fora do controle do emissor e recebida nos seguintes casos: se o destinatário designou um sistema de informação para receber mensagens eletrônicas, a recepção acontecerá:

a) no momento em que a mensagem entrar no sistema designado;

b) ou no momento em que a mensagem foi recuperada pelo destinatário, quando esta entrar noutro sistema que não o designado. Caso o destinatário não designou um sistema de informação,

Muito cuidado com a sucata tecnológica


Henrique Barreto Aguiar

Diretor da BCS Informática, especializada em soluções para a área jurídica e para o setor corporativo.
Website: www.bcsinfo.com.br
Email: mail@bcsinfo.com.br

Inserido em 7/9/2005

Parte integrante da Edição no 142

Código da publicação: 787




A popularização dos PCs ou computadores pessoais, nos últimos 20 anos, aliada às constantes evoluções no poder de processamento e na capacidade de memória dos micros gerou a rápida obsolescência desses equipamentos, que são descartados na mesma velocidade. Entretanto, o descarte de micros antigos além de criar um "lixo tecnológico" que assume, a cada dia, enormes proporções, fez surgir um problema ainda maior e que, ao contrário do que se poderia pensar, não se relaciona com o acúmulo de sucata, mas sim, com o que ela contém.

De fato, muitos empresários estão entregando informações confidenciais na mão de bandidos, sem sequer suspeitar. Na verdade, a maioria das pessoas não sabe que é possível recuperar praticamente 100% dos dados que foram apagados dos computadores, mesmo que o HD – Hard Disk ou disco rígido tenha sido formatado. E assim, sem saber, pessoas – físicas ou jurídicas –, jogam fora, doam ou vendem "baratinho" dados sigilosos ou até pessoais. E, em tempos de informações críticas, que valem muito dinheiro e custam até a sobrevivência das companhias, o lixo nunca foi tão valioso.

Até hoje, proteger as informações compreendia a utilização de soluções como os antivírus e firewalls. O setor corporativo, já há algum tempo, adota medidas de segurança direcionadas a redes e a conteúdos. Porém, infelizmente, ninguém pensou em tratar as informações deixadas nos computadores usados. O problema é que a maioria das organizações desconhece não apenas os riscos de segurança de dados associados ao maquinário para descarte, como também os sistemas disponíveis que conseguem apagar permanentemente estas informações. Desta forma, as companhias deixaram uma brecha imensa para que espiões obtenham dados críticos.

É importante frisar que as práticas e ferramentas utilizadas atualmente para apagar dados - deletar e re-formatar o HD - permitem fácil recuperação. Os comandos "Delete" e "Format" afetam apenas o arquivo FAT – File Allocation Table. O resíduo do HD fica intacto. Assim, a recuperação de dados é muito fácil. E, o mais temerário é que esta recuperação é extremamente eficiente, entre 90 e 100% de sucesso, além de ser rápida e barata, já que existem muitos softwares de recuperação de dados disponíveis.

Vejamos, dentro destes micros descartados e com os quais ninguém mais se preocupa, todas as informações que um dia foram armazenadas podem ser restauradas. Para que fins? Ora, não sejamos ingênuos. Quem se dá ao trabalho de recuperar dados é porque quer ter alguma vantagem com tais informações. Mas, na maioria das vezes, utilizam para fins maliciosos ou comerciais.

Por isto, é plausível dizer que a sucata tecnológica é muito valiosa. Contém arquivos recuperáveis como planejamentos financeiros completos; informações sobre pacientes; dados pessoais, número de contas e de cartão de crédito; andamento de processos judiciais, além de pesquisas e desenvolvimento de produtos, que absorvem investimentos da ordem dos milhões de dólares.

E, embora seja uma violação dos direitos do dono das informações é preciso reconhecer que quem se apropria delas, nem mesmo pode ser enquadrado como um ladrão, já que não houve roubo. Pelo contrário, este conteúdo foi comprado; jogado no lixo, literalmente, ou ganhado. Mas, antes de se travar uma discussão jurídica do assunto, sem dúvida necessária, o melhor mesmo é prevenir. Afinal, estamos falando de arquivos secretos ou pessoais que podem cair em mãos erradas.

E, como é fácil supor, as conseqüências são desastrosas. Basta imaginar que os dados confidenciais, obtidos por meios ilícitos de recuperação de dados, podem destruir o relacionamento com clientes ou parceiros, além de acarretar complicações judiciais. É evidente que a exposição de informações sigilosas, implica, além de tudo, no descumprimento de obrigações legais previstas em contrato, em cláusulas de confidencialidade. Mesmo que não seja intencional, causa prejuízos e, portanto, enquadra-se na categoria de "culposo", o que deve obrigar o setor corporativo, cada vez mais, a adotar políticas de segurança que incluam o tratamento dos computadores usados.

Para se precaver já existem softwares capazes de "limpar" permanentemente o HD. Estas soluções são conhecidas pelo nome genérico de "Trituradores Digitais" e são baseadas em um programa que atua no disco rígido e em suas divisões. Usa um método de escrever sobre o que estava escrito, de forma a tornar os dados contidos anteriormente irrecuperáveis. Estas soluções são extremamente eficientes e podem garantir proteção efetiva. Além disso, esse "triturador digital", é extremamente fácil de usar e pode ser incorporado nos procedimentos de segurança da empresa, mesmo em grandes corporações, sem acarretar maiores demandas.

Apenas para servir de alerta, é bom lembrar que a sucata tecnológica já causou vários problemas. Quem não se lembra do portfólio financeiro de Paul McCartney, que foi parar na Internet, depois de ter sido resgatado de um micro descartado pelo ex-Beatle. Outro caso bastante conhecido foi o da recuperação, pelo FBI, dos e-mails deletados, trocados entre o ex-presidente Clinton e Mônica Lewinsky. E, até documentos ultra-secretos pertencentes ao governo australiano foram recuperados de um computador usado bem como o caso da reprodução de um registro detalhado de 300 pacientes, a partir de dados que estavam armazenados num computador de segunda-mão.

Assim, vale ressaltar que softwares "trituradores digitais" devem ser usados antes de se devolver um computador alugado; antes de doá-lo, vendê-lo ou enviá-lo para a manutenção e, até mesmo, quando o micro muda de mãos dentro da empresa. Apenas desta forma, o lixo tecnológico será somente sucata.

Os hackers e os tribunais brasileiros


Renato Opice Blum e Camilla do Vale Jimene

Renato Opice Blum: Advogado e economista; Professor da FGV, PUC, IBMEC/IBTA, UFRJ, FIAP, ITA/CTA (convidado) e outras; Árbitro da FGV, da Câmara de Mediação e Arbitragem de São Paulo (FIESP), do Tribunal Arbitral do Comércio e outras; Presidente do Conselho de Comércio Eletrônico da Federação do Comércio/SP; Autor/ Colaborador das Obras: "Direito Eletrônico - a internet e os tribunais", “Novo Código Civil – questões controvertidas”, “O direito na Sociedade da Informação”, “Internet Legal”, “Conflitos sobre Nomes de Domínios”, "Comércio Eletrônico", "Direito & Internet - aspectos jurídicos relevantes”, “Direito da Informática – temas polêmicos”, "Responsabilidade Civil do Fabricante e Intermediários por Defeitos de Equipamentos e Programas de Informática", "O Bug do Ano 2000 - aspectos jurídicos e econômicos” e outras.
Camilla do Vale Jimene - Advogada atuante nas esferas cível e trabalhista, com ênfase em Direito Eletrônico e da Informática. Pós-graduanda em Processo Civil pela PUC-SP. Cursou Aperfeiçoamento em Processo Trabalhista, junto ao Prima-Ielf. Desenvolveu estudos sobre a NBR ISO/IEC 17799:2005 (Tecnologia da Informação). Palestrante convidada no Seminário “Riscos do Outsourcing e Internet” realizado na Bovespa, o qual originou matéria publicada em edição da revista Banco Hoje; atuou como Presidente de Mesa e Palestrante no curso “Controle de E-mails, Segurança da Informação e os Tribunais” na Academia de Desenvolvimento Profissional e Organizacional (ADPO); congressista no Congresso de Auditoria de Sistemas e Segurança da Informação (CNASI), participante do seminário “Práticas, Políticas e Instrumentos sobre o Uso da Internet nas Empresas” no Canal Executivo. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Informática e Internet.

Inserido em 21/7/2006

Parte integrante da Edição no 188

Código da publicação: 1432




Novamente, após recente decisão da justiça em ação movida pela Arcor do Brasil em face da Telesp, na qual o juiz de primeiro grau decidiu pelo cancelamento de cobrança de conta telefônica por possível ataque de hackers aos sistemas da empresa de telefonia, veio à tona a polêmica sobre os criminosos virtuais e o posicionamento dos Tribunais Brasileiros, inflamando os ânimos da sociedade, que se sente completamente vulnerável a tais ataques.

No final do ano passado, uma decisão judicial também gerou muita discussão. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em sentindo completamente oposto, decidiu em segunda instância que o usuário deveria pagar por ligação interurbana que afirmou não ter realizado, por constatar-se que em sua máquina existiam vírus que possibilitariam tal conexão, concorrendo culposamente para a ocorrência da fraude.

As conseqüências de posicionamentos tão divergentes, certamente refletirão nas futuras discussões sobre o tema, abrindo margem para infinitas esteiras de raciocínio. Posto isso, há de se ressaltar que o direito não é uma ciência exata, pois de maneira muito peculiar ele vai se reformulando e se adaptando através dos tempos à realidade da época.

Nesse sentindo, vem se consolidando dia-após-dia, o entendimento de que os provedores de acesso à Internet têm a obrigação de fornecer os dados cadastrais, bem como os registros eletrônicos de usuários que praticam atos ilícitos através da rede mundial de computadores e, mais, como portas de entrada e saída da Internet, têm responsabilidade pela identificação do usuário, afinal referida conduta acoberta os fraudadores, o que jamais deverá ser admitido de empresas que prestam serviços de verdadeira utilidade pública.

Não obstante a morosidade de nosso poder judiciário, as decisões em demandas que envolvem fraudes através dos meios eletrônicos estão construindo uma linha de entendimento muito coerente e acertada, entretanto, sempre haverá um ponto controvertido a ser debatido exaustivamente até que seja pacificada uma única esteira de raciocínio, o que é normal no âmbito jurídico.

A pornografia infantil virtual e as dificuldades jurídicas para combatê-la – o caso do second life


Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito, 32a. Vara Cível do Recife

Inserido em 20/10/2007

Parte integrante da Edição no 250

Código da publicação: 1860






Há pouco mais de uns três meses, uma reportagem noticiou que usuários do site Second Life(1) estariam sendo investigados pela polícia alemã sob acusação de práticas pedófilas. Segundo a notícia(2), os pedófilos estariam atuando nesse “mundo virtual” através de seus personagens (avatares)(3), para representar atos que envolvem sexo com crianças. Em uma das cenas registradas, a imagem computadorizada de uma criança é abordada por um adulto, que lhe entrega quantia equivalente a dois euros e, então, a leva a um quarto, onde abusa dela sexualmente. Em outra cena denunciada pela reportagem, um grupo de usuários do Second Life assiste a seguidos estupros de uma menina virtual de 13 anos.
A empresa Linden Lab, baseada em São Francisco (EUA), criadora do jogo Second Life(4), afirmou que vai colaborar com a Agência Central de Prevenção à Pornografia Infantil, baseada na cidade de Halle, na Alemanha, na identificação dos usuários envolvidos nos atos virtuais. O promotor alemão Peter Vogt, responsável pelas investigações, assegurou que sua intenção é identificar os usuários e levá-los à Justiça(5).
As declarações do promotor alemão soam mais como ameaça do que como medida efetiva de persecução e punição criminais. De fato, quais crimes teriam sido cometidos no ambiente virtual do Second Life? A imagem representativa da criança não é uma criança real, nem sequer relacionada a uma pessoa (através de nome ou outros caracteres) real. Nem os pedófilos nem suas vítimas existem realmente, mas somente as pessoas que participam desse jogo e desempenham esses papéis nesse “mundo virtual”. Os avatares que representam graficamente as crianças podem ter sido criados e estar sendo utilizados por pessoas adultas(6). Ou seja, provavelmente os usuários que estavam por trás dos “avatares” abusados virtualmente (e seus agressores virtuais) são maiores de idade e, portanto, mesmo que se consiga identificá-los (através dos números de IP ou qualquer outra técnica de rastreamento), será possível responsabilizá-los? Os usuários que cometeram esses atos virtuais podem ser enquadrados em qual tipo penal?
Ainda na mesma reportagem, foi atribuída a seguinte afirmação ao promotor alemão: “Podemos contar com um processo criminal por oferta de pornografia de terceiros, que pode levar a penas de três meses a cinco anos de prisão”(7). Mas será mesmo que o promotor Peter Vogt tem base legal para punir os usuários que participaram da difusão das imagens de vídeo de sexo on line em três dimensões? É bom lembrar que as cenas difundidas no Second Life não se equiparam a fotografias ou imagens de crianças reais, nem mesmo são fotografias de pessoas com aparência de crianças. As imagens virtuais que lá foram exibidas, dos avatares de um homem adulto e de uma menina menor de idade simulando sexo, mais se assemelham às características do “desenho animado” (cartoon) do que qualquer outra coisa. A distribuição desse tipo de material ou conteúdo visual, portanto, pode ser enquadrado como crime de pornografia infantil virtual?
A resposta é: imagens dessa natureza podem ser enquadradas como pornografia infantil virtual, dependendo do estágio atual da evolução da legislação do país específico onde os atos forem considerados realizados. Explico:
A legislação dos países modernos é bem rígida quando se trata de punir a produção e distribuição de fotografias indecentes, que envolvam cenas de sexo com crianças. Então, essa “legislação de primeira geração”, digamos assim, está apta a oferecer resposta punitiva a uma primeira categoria de pornografia infantil: a que se realiza com a produção ou distribuição de material proveniente de abuso sexual a crianças reais.
É o caso da legislação brasileira, pois o art. 241 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), na redação que lhe foi dada pela Lei 10.764/03, pune quem "apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive Internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente", com pena de reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Assim, quem fotografar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente, está sujeito às penalidades da legislação criminal brasileira.
A nova redação do art. 241 do ECA (Lei 8.069/90) não alcança, no entanto, as "simulações" de pornografia infantil, pois como visto ela só tipifica a disseminação de imagens que sejam efetivamente a reprodução de cenas que envolvam a participação real de menores. A legislação brasileira é suficiente para reprimir apenas esse tipo de pornografia infantil, mas deixa espaço para a prática de um outro tipo de conduta também nociva à sociedade, que consiste na produção e distribuição de imagens fotográficas contendo sexo explícito que não utilizem crianças reais. Essa segunda categoria de pornografia infantil é fruto de técnicas de computação gráfica (ou mesmo através do emprego de adultos com a aparência infantil), que simulam cenas de menores envolvidos em relações sexuais explícitas. Esse tipo de material visual aparenta descrever essas cenas, mas na verdade é produzido sem a participação efetiva de uma criança. O desenvolvimento da tecnologia, sobretudo de softwares de computação gráfica, permitiu produzir e disponibilizar imagens dificilmente distinguíveis de uma fotografia (ou vídeo) de uma criança real abusada sexualmente.
Essas “simulações fotográficas” caracterizadas pela utilização de imagens de pessoas com aspecto infantil, que não podem ser distinguidas (pelo menos sem o uso de recursos técnicos) de fotografias de cenas reais de crianças exploradas sexualmente, também são chamadas de “pseudo-pornografia”, termo que é utilizado para definir todo tipo de montagem de imagen indecente criada por recursos computacionais (softwares de computação gráfica). Com efeito, uma “pseudo-fotografia” pode ser definida como uma imagem, quer feita com a utilização de computação gráfica ou outro recurso, que aparente ser uma fotografia. Por sua vez, a “pseudo-pornografia infantil” pode ser conceituada como o ato de produzir ou distribuir imagens criadas artificialmente (mediante a utilização de recursos computacionais gráficos ou qualquer outro método), que aparentem ser a reprodução fotográfica de uma criança real em situação de exploração sexual.
Durante a tramitação do projeto (da Lei n. 10.764/03) pela Câmara, o relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação (CCJR), Deputado Carlos Biscaia (PT-RJ), ofereceu subemenda em forma de substitutivo que propunha uma redação diferente a esse artigo, de maneira alcançar também a utilização de imagens simuladas. O substitutivo acrescentava um parágrafo (3o.) ao art. 241, definindo pornografia infantil como "qualquer representação, por qualquer meio, de criança ou adolescente no desempenho de atividades sexuais explícitas ou simuladas ...". Pretendia assim, como se disse, criminalizar a chamada "pornografia infantil virtual", entendida esta como o material visual que aparenta descrever cenas de menores envolvidos em relações sexuais explícitas, mas que na verdade é produzido sem a participação efetiva de uma criança (menor de 18 anos). Esse adendo, no entanto, foi suprimido quando o projeto retornou ao Senado para reapreciação(8).
Embora a legislação brasileira não se mostre adequada para combater esse segundo tipo de pornografia infantil, outros países já resolveram o problema, reformulando suas legislações para reprimir também a pornografia infantil que não represente um registro permanente de um efetivo abuso sexual contra uma criança real. É o caso, por exemplo, dos EUA, onde uma nova ação legislativa foi tomada, através da edição do "PROTECT ACT"(9), que criou uma sub-categoria estreitamente definida de imagens proibidas. A Lei estabelece hipótese de pornografia infantil "quando a descrição visual é uma imagem, imagem de computador ou gerada por computador que seja, ou que seja impossível de distinguir, de um menor engajado em conduta sexual explícita"(10). Na Inglaterra, da mesma maneira, a lei já pune a prática da produção e disseminação de imagens e cenas indecentes que não sejam distinguíveis de fotografias de crianças reais. O “Protection of Children Act”, de 1978(11), foi emendado(12) para cobrir a produção, distribuição ou apresentação de fotografias (o que inclui imagens de vídeo) ou pseudo-fotografias de crianças em cenas indecentes(13).
Além da pornografia infantil veiculada por meio da fotografia de uma criança real ou pseudofotografia de criança (a imagem feita por meio de computação gráfica ou de outra maneira que aparente ser uma fotografia), ainda temos uma terceira geração de pornografia infantil, mais difícil de ser combatida.Trata-se de todo o conjunto de imagens que constituem o espectro de pornografia infantil não fotográfica (non photographic child pornograph). Nessa categoria se enquadram todas as imagens no estilo fantasia (fantasy stile), a exemplo dos cartoons, desenhos animados (mesmo aqueles em 3D), pinturas e toda forma de material visual que descreva cenas de sexo com crianças, mas não se confundem com uma fotografia ou não causam a impressão de que derivam de uma criança real. Cartoons, imagens animadas, desenhos e toda série de trabalhos gráficos dotados de animações com intenções voltadas à pornografia infantil, mas que são facilmente distinguíveis de cenas reais, constituem essa terceira categoria de pornografia infantil.
A diferença entre esta última e a segunda categoria de material ou conteúdo pornográfico infantil está em que as descrições gráficas são facilmente distinguíveis da realidade. Ao contrário da precedente, imagens de desenhos, cartoons ou pinturas caracterizando sexo com crianças são facilmente distinguíveis da realidade, isto é, a pessoa que as vê percebe com facilidade que não retratam pessoas reais. Já as pseudofotografias, aquelas “simulações fotográficas” feitas por meio do uso da computação gráfica, caracterizam-se pela dificuldade de distinguir se são ou não reais, isto é, se são a representação de pessoas reais fotografadas em cenas obscenas ou se são apenas montagens geradas para dar essa impressão. Se uma pessoa ordinária vê uma dessas pseudofotografias, por serem indistinguíveis de uma cena real capturada por máquina fotográfica ou filmadora, conclui que a cena envolve uma criança real engajada em conduta sexual explícita. Tal sensação não ocorre quando se trata de cartoons, desenhos ou pinturas que representem menores em cenas obscenas, pois aí não há essa dificuldade em distinguir o que é real ou apenas fruto da computação gráfica.
As imagens que aparecem no Second Life contendo cenas de sexo entre adultos e menores se enquadram nessa última categoria, da terceira geração de pornografia infantil. O cenário e as pessoas (avatares) que transitam nesse ambiente virtual são facilmente distinguíveis da realidade, no sentido de que quem o acessa não tem a impressão de que pessoas reais circulam nesse ambiente. O ambiente gráfico do “jogo” mais se assemelha à conotação visual de um desenho animado e os “avatar” - a representação de cada usuário nesse ambiente - não é formado por uma foto e com características idênticas da pessoa do participante.
Por serem, portanto, “imagens de fantasia”, mesmo aquelas em que crianças aparecem sofrendo abusos sexuais, a sua divulgação não é suficiente para caracterizar o crime de pornografia infantil, a não ser que a lei tenha previsão para criminalizar também esse tipo de conteúdo obsceno. As imagens gráficas (em computação, dos avatares) de um homem adulto e da menina menor de idade simulando sexo compõem o espectro de animações gráficas que se assemelham às características do “desenho animado” ou cartoon.
Pelo menos pela incipiente lei brasileira (art. 241 do ECA, com a redação da Lei n. 10.764/03), não se teria como caracterizar essa situação como crime de pornografia infantil. A esmagadora maioria das legislações de outros países também não está aparelhada o suficiente para combater essa nova modalidade de pornografia infantil que começa a infestar a Internet.
Com o desenvolvimento da tecnologia, as legislações penais dos países passaram a sofrer de um gap em relação às imagens de “fantasia” de abuso sexual de menores. Somente uma nova ação legislativa seria capaz de afastar essa ameaça aos esforços estatais de combate à pornografia infantil, através da criação de uma subcategoria estreitamente definida de imagens ilícitas (cartoons, desenhos e imagens animadas envolvendo menores em cenas obscenas). Uma atuação legislativa é necessária para impedir a disseminação dessa nova categoria de pornografia infantil na Internet. Sem isso, fica impossível para a polícia prender ou mesmo para o Ministério Público denunciar as pessoas que possuem, produzem e divulgam esse tipo de imagens (“fantasy style”).
Há uma compreensão generalizada entre os estudiosos de que existe uma relação direta entre o número de crimes de pedofilia e a difusão de material pornográfico infantil na Internet. As imagens divulgadas no Second Life, envolvendo reproduções animadas de sexo com crianças, servem como combustível para o abuso de crianças reais, por funcionar revigorando os sentimentos pedófilos de potenciais predadores sexuais. No mínimo, a circulação desse tipo de material serve para inculcar e desenvolver uma cultura ou sentimentos pedófilos.

A legislação, portanto, precisa evoluir para oferecer uma resposta a essa nova realidade trazida com o desenvolvimento tecnológico, com a criação de um novo tipo penal de possessão e divulgação de arquivos contendo imagens não fotográficas de abuso sexual de crianças.

Canadá, Estados Unidos e Austrália já possuem legislação criminalizando a posse, distribuição e divulgação de imagens não fotográficas (non photographic images) de cenas de sexo ou abuso a crianças, o que cobre qualquer material obsceno produzido através de desenho animado (cartoon), pinturas, esculturas e outras formas de representação gráfica. O Home Office da Inglaterra, Departamento do Governo encarregado de proteger o público contra o terrorismo e o crime, lançou recentemente uma consulta(14) sobre a proposta de criar um novo tipo de crime relativo à possessão de imagens não fotográficas que retratem abuso sexual de crianças. A atual lei inglesa somente proíbe a posse de fotografias ou pseudofotografias que contenha esse tipo de conteúdo, mas a proibição não alcança cartoons, desenhos animados, pinturas e todo tipo de imagens que compõem o gênero “estilo fantasia”.

O citado “Protec Act”, a lei americana de proteção às crianças na Internet, contém uma seção específica sob o título Obscene Visual Representations of The Sexual Abuse of Children, onde prevê expressamente a punição de qualquer pessoa que “deliberadamente produz, distribui, recebe ou tem a posse com intenção de distribuir(15), uma representação visual de qualquer tipo, incluindo um desenho, cartoon, escultura ou pintura que descreva um menor engajado em conduta sexualmente explícita, seja obscena ou descreva uma imagem gráfica que é, ou aparente ser, de um menor engajado em bestialidade, sádico ou masoquista abuso, sexual intercurso, incluindo genital-genital, oral-genital, anal-genital ou oral-anal, quer seja entre pessoas do mesmo ou de diferente sexo”(16) (grifo nosso). Para configurar o crime e permitir a punição do agente, a lei ressalva que o material tem que ser despido de “sério valor literário, artístico, político ou científico”.

Como se observa, alguns países já resolveram o problema, criminalizando a posse e distribuição de material visual não fotográfico que descreva abuso sexual de criança, ou estão no caminho de fazer isso (como é o caso da Inglaterra). Falta ao Brasil tomar a mesma iniciativa, sob pena de o ato de publicar cenas como as que foram transmitidas no Second Life ficar sem qualquer tipo de repressão, em ocorrendo de os responsáveis residirem em território brasileiro.
O ideal seria a criação de um novo tipo penal, uma subespécie do crime de pornografia infantil, para cobrir os casos de posse, produção e distribuição de pseudofotografias e cartoons, desenhos e qualquer outro material visual que descreva cenas obscenas envolvendo crianças e adolescentes. Isso poderia ser feito facilmente, simplesmente acrescentando-se um parágrafo ao art. 241 do ECA, com a previsão de que também incorreriam no crime de pornografia infantil todo aquele que produz, vende, fornece, divulga ou publica por qualquer meio, pseudofotografias ou “qualquer representação visual” de uma cena de sexo explícito com criança ou adolescente. Um descritor normativo desse tipo seria suficiente para abranger não somente as pseudofotografias (aquelas indistinguíveis de uma foto real), como também qualquer cartoon, desenho, imagem gerada por computação gráfica ou pintura de conteúdo pornográfico infantil.
O legislador, no entanto, teria que tomar algumas precauções. As penas não poderiam ser as mesmas para quem distribui material proveniente de um efetivo abuso a uma criança real e para aquele que apenas gera cenas de pornografia infantil utilizando-se de técnicas de computação gráfica. Em parágrafo subseqüente, deveria criar um tipo penal para criminalizar a simples posse de material pornográfico infantil, também com penas menos severas. A criminalização da posse permitiria à polícia apreender imagens com pornografia infantil, retirando de circulação esse tipo de material.
Outra precaução seria ressalvar o material de valor artístico e histórico. Itens de genuíno valor histórico, artístico ou científico devem ficar livres do alcance da lei, em razão de ter que se garantir a liberdade de expressão das pessoas, na manifestação de seus sentimentos artísticos e culturais(17).
Urge que essas medidas legislativas sejam adotadas. O Estado tem um interesse direto na repressão da pornografia infantil, quer seja ela a representação gráfica de um ato de abuso sexual contra menores, seja quando representa um incentivo a esse tipo de crime - o que ocorre quando imagens de crianças molestadas sexualmente são divulgadas. Os pedófilos distribuem esse tipo de material não somente para simplesmente extravasar suas (doentias) fantasias sexuais, mas sobretudo para difundir uma espécie de filosofia pedófila. Muitas pesquisas sugerem que a divulgação de pornografia infantil, em qualquer de suas formas, contribui para o aumento de crimes sexuais contra menores.
O caso do Second Life revela que o mercado da pornografia infantil se diversifica e tende a crescer. Novas formas de apresentação de pornografia infantil espoucam na Internet, benefíciando uma cultura pedófila. Uma omissão das autoridades em agir agora certamente levará ao crescimento desse mercado negro no futuro. O meio mais expedito e eficiente de eliminar esse mercado é através da criação de leis e imposição de penas severas, a quem quer que mantenha em sua guarda, venda, faça propaganda ou divulgue pornografia infantil, em qualquer de suas formas.

Recife, 30.08.07.

Notas:

(1) O Second Life (Segunda Vida, em inglês) é um mundo virtual em que os usuários criam figuras (ou avatares) para viver uma vida virtual. Atualmente, o site conta com mais de 6 milhões de habitantes, um número que cresce diariamente.
(2) Publicada no site da Folha On Line, do dia 09.05.07, em http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u62141.shtml
(3) No programa Second Life, os usuários interagem no ambiente virtual através de figuras – os avatares -, que são a representação virtual de suas pessoas.
(4) http://secondlife.com/
(5) Ver também notícia sobre o assunto publicada no site Consultor Jurídico - http://conjur.estadao.com.br/static/text/55579,1
(6) O Second Life tem uma política para evitar a participação de menores no “jogo”, tanto que um dos requisitos para acessar o ambiente é fornecer os dados de um cartão de crédito.
(7) A pena prevista na legislação alemã por pornografia infantil na internet, com uso de imagens, é de 5 anos de prisão, segundo a reportagem.
(8) Por essa razão, nossa legislação sofre de um gap em face do avanço das tecnologias da informação, que facilitam a distribuição de pseudopornografia infantil pela Internet. A legislação parece tão atrasada que nem sequer pune a simples posse de pornografia infantil (em qualquer de suas modalidades), a não ser que se considere que o verbo “apresentar”, incluído no descritor normativo do art. 241 do ECA (na redação dada pela Lei 10.764/03), corresponde à atitude de alguém possuir ou manter, em casa ou em disco do computador, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente. Parece-nos, no entanto, que esse vocábulo procura expressar a conduta de quem expõe, exibe, mostra ou coloca o material ilícito (a imagem ou filme) ao conhecimento de outras pessoas. Legislações de outros países pune a simples posse de material pornográfico infantil, mesmo sem fins de revenda ou difusão.
(9) O texto pode ser encontrado em: http://judiciary.senate.gov/special/S151CONF.pdf
(10) Além disso, passou a prever que a prova de não uso de crianças em material de pornografia seria considerada uma affirmative defense, isto é, um ônus processual do réu ou incriminado. A lei, portanto, simplesmente transferiu o ônus da prova da (i)licitude da acusação para a defesa. Sugerimos, para quem quiser maiores informações sobre a matéria, a leitura de nosso artigo “O ‘PROTECT Act’ - a lei americana de proteção às crianças na Internet (parte II), publicado em 13.10.2003, em http://www.infojus.com.br/webnews/noticia.php?id_noticia=1891& .
(11) O texto pode ser encontrado em: http://www.geocities.com/pca_1978/reference/pca_1978am2003c42.html#1
(12) Na Inglaterra, o Protecion of Children Act 1978 (citado pela abreviatura de “POCA 1978”), foi emendado para cobrir a produção, distribuição ou apresentação de fotografias indecentes (o que inclui imagens de vídeos) ou pseudofotografias de crianças. A Lei foi estendida pela Section 160 do Criminal Justice Act 1988 (“1988 Act”), para cobrir a simples posse de uma fotografia indecente ou pseudofotografia de uma criança. Pouco depois, o Criminal Justice and Public Order Act 1994 emendou o “POCA 1978” e o “1988 Act” para incluir pseudofotografias dentro da definição de material ilegal. Por fim, o
Sexual Offences Act 2003 elevou a idade da criança de 16 para 18 anos.
(13) O conceito de indecência é deixado para exame das cortes judiciárias.
(14) http://www.homeoffice.gov.uk/documents/cons-2007-depiction-sex-abuse?view=Binary
(15) A simples posse de material obsceno não fotográfico, mesmo sem intenção de distribuição, também é punida em outro dispositivo da mesma seção - ‘‘(b) ADDITIONAL OFFENSES”—, mas com penas diferenciadas.
(16) § 1466A. Obscene visual representations of the sex ual abuse of children
‘‘(a) IN GENERAL.—Any person who, in a cir cumstance described in subsection (d), knowingly pro duces, distributes, receives, or possesses with intent to distribute, a visual depiction of any kind, including a drawing, cartoon, sculpture, or painting, that—
‘‘(1)(A) depicts a minor engaging in sexually explicit conduct; and
‘‘(B) is obscene; or
‘‘(2)(A) depicts an image that is, or appears to be, of a minor engaging in graphic bestiality, sadistic or masochistic abuse, or sexual intercourse, including genital-genital, oral-genital, anal-genital, or oral-anal, whether between persons of the same or opposite sex; and
‘‘(B) lacks serious literary, artistic, political, or scientific value; or attempts or conspires to do so, shall be subject to the penalties provided in section 2252A(b)(1), including the penalties provided for cases involving a prior conviction.”
(17) Por exemplo, existe uma categoria de cartoons de conteúdo pornográfico muito difundida no Japão, conhecido por “hentai”. Geralmente, retratam atos sexuais inaceitáveis na sociedade e formas sexuais extremas. A audiência ocidental tem ganho contato com as formas de pornografia “hentai” sobretudo através da Internet. Em algumas localidades do Japão e regiões orientais, no entanto, o “hentai” é considerado verdadeira arte, e seus produtores são vistos como artistas. Isso ilustra a dificuldade, em alguns casos, de distinguir o que seja mera pornografia da arte gráfica. Para quem deseja saber mais sobre “hentai”, sugerimos uma visita ao site da Wikipedia - http://en.wikipedia.org/wiki/Hentai

A Pedofilia Virtual e Seus Reflexos no Âmbito Jurídico


Mario Sérgio Valadares Carrera

Aluno da Graduação do Curso de Bacharel em Direito das Faculdades Jorge Amado/2003

Inserido em 18/11/2007

Parte integrante da Edição no 254

Código da publicação: 1881





INTRODUÇAO

O século XX trouxe a baila um dos eventos de maior repercussão no contexto mundial – A Internet. Esse fenômeno atrai, a cada dia, um número cada vez mais expressivo de pessoas das mais variadas idades, culturas, nacionalidades e classes sociais. Fácil é perceber que com esse advento rompem-se as fronteiras do tempo e do espaço.

Hoje se torna incontestável o fato de que a rede mundial de computadores recriou (e inovou) revolucionariamente a Arte da Comunicação. Saudosismos à parte, a realidade é que até as pessoas da geração máquina de escrever, tem se rendido à praticidade dos tão eficientes correios eletrônicos.

Numa velocidade nitidamente superior a Internet passou a atender as mais diversas necessidades, favorecendo surgimentos de público bastante diversificado que buscava a nova ferramenta para fazer um simples download de jogo virtual às transações mais complexas de ordem comercial, financeira, dentre outras.

As atividades educacionais, que nos últimos anos vem ganhando grandes proporções no mundo virtual têm sido uma das legitimadoras do encurtamento de distância do espaço promovidas pela Internet. Segundo Benackouch (1995) o sucesso da rede eletrônica Internet aparece cada vez mais como um fato incontestável: com efeito, além das suas já confirmadas possibilidades no campo da comunicação, ampliam-se os usos dos serviços educativos, comerciais e de lazer, dentre outros que oferece.

O sucesso é tanto que não tem sido possível determinar, com precisão o número de seus usuários, tanto no Brasil, como no mundo (...). Aparenta, ainda, que esta incerteza, não parece ser um problema, acredita-se que a Constituição da clientela na rede – também chamada “comunidade virtual” – está apenas começando e que, portanto, estes números só tendem a crescer num numero cada vez mais rápido.

Em sua opinião, a rapidez tem sido justamente o traço mais evocado para caracterizar a expansão da Internet e, por extensão, das transformações que seu uso vem causando nas políticas sociais contemporâneas.

Vale recordar que num passado não muito longínquo aquilo que se atribuía devaneios do pensamento humanos, materializava-se apenas via películas de ficção cientifica. Nos dias atuais esse fenômeno é concreto. E o homem constrói o denominado - Cyberspace.

De acordo com as definições de Crumilish (1997), o termo Cyberspace foi popularizado por Willian Gibson para designar a realidade imaginaria compartilhada das redes de computadores. Algumas pessoas usam o termo (Ciberespaço) como sinônimo de Internet. Outros entendem ser uma realidade mais completa, consensual e similar ao mundo físico, tal como a retratada nos romances de Gibson.

A PEDOFILIA NO AMBIENTE VIRTUAL
A facilidade de acesso aliada ao caráter sigilos que configura o tipo de comunicação estabelecido entre os internautas (termo que designa as pessoas que se comunicam no ambiente virtual) favorece a ação criminosa de indivíduos inescrupulosos.

Dentro de um panorama de progressos e conquistas a violência ganha novos contornos que fere drasticamente dignidade da pessoa humana. É nos chats que CRUMILISH (1997) define como comunicação linha a linha com outro usuário pela rede de mundial de computadores de forma sincronizada em tempo real (real time) tal qual em uma conversa telefônica e diferente de um intercâmbio de mensagens de correio eletrônico, que as pessoas formam verdadeiras comunidades virtuais com diferentes propósitos.

Nesse contexto milhares de usuários pertencentes a diversas esferas sociais, econômicas e culturais desvirtuam - se das trilhas enriquecedoras da informação para adentrar os corredores obscurecidos pela cegueira social que oferece campo fértil a pedofilia virtual.

Segundo Hirgail (2001), no mundo inteiro, a pornografia infantil eletrônica tornou-se a nova modalidade de comunicação entre os usuários da Internet, atraindo adultos, jovens e crianças através dos enunciados sobre a pedofilia virtual. Aponta que a dimensão eletrônica desse tipo de pornografia é reveladora de uma linguagem virtual e imaginária, onde a expressão sexual do adulto é representada pela banalização da sexualidade infantil.

De acordo com o texto elaborado no congresso Child Pornography Prevention Act realizado nos Estados Unidos (1996) admitiram que os avanços tecnológicos promovem imagens virtuais tão precisas queria abusar ou coagir crianças ou adolescentes. Essa tendência se confirma a partir das cifras que são geradas anualmente com o comércio de fotografias e vídeos pela Internet. O comércio do crime pedofilia na rede gera mais de U$ 300 milhões de dólares por ano (censura.com.br, 2003).

Hisgail (2001) diz que a pornografia eletrônica além de registrar o abuso sexual de crianças e bebês, é também uma forma rentável de exploração de meninos e meninas. Ele incentiva a prostituição infantil com fotos, dvd’s e vídeos mostrando nus de adolescentes em poses eróticas.

MAS O QUE É PEDOFILIA?
Não é fenômeno novo. A prática da pedofilia tem sido nos últimos anos manchete de primeira página dos principais jornais do mundo (deflagrando números escandalosos). É considerada por alguns estudiosos como uma das mais antigas artes do prazer.

Na Grécia antiga a pratica sexual entre uma pessoa mais velha e um jovem era encarada de forma natural pela sociedade. A maioria dos casos ocorria entre pessoas do mesmo sexo, cuja incidência predominava entre homens. Funcionava como uma troca de favores pessoais, uma iniciação do jovem à fase adulta, quando passavam a desenvolver relações estáveis com o sexo oposto.

O artigo Pedofilia no site www.idamariamello.hpg.ig.com.br comenta que foi entre gregos que o vocabulário EFEBO teve origem, servindo para designar o jovem de sexo masculino que era iniciado no sexualmente por homem mais velho.

Felix MAIER (2003) aponta que a Pedofilia, antigamente, era cultuada por povos diversos, a exemplo dos gregos. Consta que filósofos tratavam sexualmente seus discípulos como se fossem suas mulheres (...). Nos paises mulçumanos, ainda hoje, é bastante comum a Pedofilia. A mulher islâmica precisa se resguardar, por isso é muito difícil que mantenha relação sexual antes do casamento (...). Por isso muitos homens islâmicos solteiros fazem uso de rapazes e meninos para a iniciação sexual. Foi o cristianismo que proibiu a pratica da Pedofilia na Sociedade. (...) Nunca em 2000 anos de existência, o Cristianismo aprovou a pratica da Pedofilia (...), em sintonia com os textos do Livro Sagrado (...).

De acordo com o DSM – Manual de Diagnostico e estatística da Associação Norte-Americana de psiquiatria e pedofilia envolve atividade sexual com crianças (pré-púbere geralmente com 13 anos ou menos). O individuo com Pedofilia deve ter 16 anos ou mais e ser pelo menos 5 anos mais velho que a criança (...).

Os indivíduos com Pedófila geralmente relatam uma atração por crianças de uma determinada faixa etária. Alguns preferem meninos, outros sentem atração por meninas, e outros são excitados tanto por meninos quanto por meninas. Os indivíduos que sentem atração pelo sexo feminino geralmente preferem crianças de 10 anos, enquanto aqueles atraídos por meninos preferem, habitualmente, crianças um pouco mais velhas. A Pedofilia envolvendo vitimas femininas é relatada com maior freqüência do que a Pedofilia envolvendo meninos (...). Os indivíduos com Pedofilia (...) podem limitar suas atividades a seus próprios filhos, filhos adotivos ou parentes, ou vitimar crianças de fora de suas famílias.

No XV Congresso Brasileiro de Medicina Legal realizado em setembro de 1998 na cidade de Salvador (Ba), M.L.S. KÛHN, J.E.S. REIS, e A. TRINCA FILHO define Abuso Sexual inadequado com uma criança (...), deve ser considerado abuso sexual de crianças os atos cometidos por uma pessoa responsável pelo cuidado da criança (por exemplo: babá, os pais, aquele que cuida da criança diariamente). Acrescentam, ainda que se o ato for cometido por uma pessoa estranha devera ser considerado como Agressão Sexual, devendo ser tratado pela policia, e cortes criminais.

COMO VEM SENDO DEFINIDA A PEDOFILIA VIRTUAL PELOS ESTUDIOSO DO TEMA?
MACLUHAN (2001), sociólogo canadense, nessa perspectiva pontua que qualquer nova tecnologia gradualmente cria um novo ambiente para o ser humano.
Com a Internet, a única medida que permite trocar o publico de forma personalizada, a pedofilia tornou-se um fenômeno globalizado. Os pedófilos formaram uma comunidade on-line (...), o pedófilo passou a acreditar que através do meio virtual os seus instintos perderiam o caráter nocivo, pois passou a integrar e compartilhar os seus atos (sentimentos) com outros pedófilos, ou seja, encontrando uma identidade psicológica (OAB – NITERÓI - 2001).

A prática da pedofilia como se vê, perpassa os tempos históricos, burila-se, adquirindo novas faces. Sofistica – se, saindo do submundo dos guetos. Evolui ao projetar - se para além das fronteiras concretas da carne ¾ virtualiza – se.

ASPECTOS DESSA VIOLÊNCIA NO UNIVERSO JURÍDICO
De acordo com os dados estatísticos divulgados pelo Ibope e Ratings, em abril de 2001 os usuários de 2 a 11 anos de idade correspondiam em torno de 4% dos internautas. Em 2002 já atingiram a marca de 6,5%. Das nove categorias pesquisadas, as crianças já acessam mais a Internet do que outras três, que englobam o público com 50 anos ou mais (FOLHA DE SÃO PAULO, 2002).

A escalada que vem se registrando nos últimos anos com relação ou número de internautas (mirim) na rede é fato real. Por outro lado, esses dados apontam para a vulnerabilidade destas crianças. Estas poderão se deparar a qualquer momento com cenas obscenas de crianças e jovens que poderiam ser o seu próprio irmão, primo, vizinho ou quem sabe o seu melhor colega da escola ou do clube que costuma freqüentar nos fins de semana.

Na realidade Pedofilia é crime. Mas qual a acepção da palavra crime? Segundo SANTOS (1998), o conceito de crime envolve várias definições O crime é um fenômeno extremamente complexo, cujo conceito envolve aspectos morais, religiosos, culturais, econômicos, filosóficos, políticos, judiciários, psicológicos, antropológico, biológicos, psiquiátricos, aspectos freqüentemente mutáveis, no tempo e no espaço, à medida que se modificam os sistemas políticos e judiciários, bem como os costumes dos povos. Afirma que todo conceito criminológico de crime assenta, necessariamente numa dupla referencia: uma jurídica e outra sociológica.

O artigo 218 do CP brasileiro define como crime de Corrupção de Menores o ato que leva a corromper ou facilitar a corrupção da pessoa maior de 14 e menor de 18 anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069 de 13 de Julho de 1990, em seu artigo 1º define que a pessoa com ate 12 anos de idade e criança e como adolescente aqueles que estão entre os doze e dezoito anos de idade. No art. 5 prescreve que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, descriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

O Art. 241 do ECA reforça as garantias ao prescrever que aquele que fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfico envolvendo criança ou adolescente será punido com reclusão de um a quatro anos.

§ 4º A lei punira severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

A Constituição Federal em seu art. 227 diz que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, saúde, alimentação, educação, ao lazer, à profissionalização, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de coloca – los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Todos esses amparos jurídicos constituem grandes avanços que tanto asseguram a proteção das crianças e adolescentes por parte do Estado quanto alude para a importância da participação da sociedade como um todo no que pertine a tal responsabilidade. Necessário dizer um não ao silêncio que nutre e potencializa tais crimes que se disseminam pelas raias da omissão, provocando danos sociais catastróficos.

PERFIL DO DELINQUENTE SEXUAL
PARISOTTO (2001), afirma que a Pedofilia assim como as outras categorias de abusos sexuais ocorrem em todas as classes sociais, raças e níveis educacionais. Ressalta que a grande maioria de abusadores é de homens, mas suspeita-se que os casos de mães abusadoras sejam sub-diagnosticados em quatro faixas etárias de abusadores:

* Jovens até 18 anos de idade, que aprendem sexo com suas vitimas;
* Adultos de 35 a 45 anos de idade que molestam seus filhos ou os de seus vizinhos;
* Pessoas com mais de 55 anos de idade que sofreram algum estresse de alguma perda por morte ou separação, ou mesmo com alguma doença que afete o sistema nervoso central;
* Aqueles que não importam a idade, ou seja, aqueles que sempre foram abusadores por toda a vida.
* Observa que o sexo praticado com crianças geralmente é oro-genital, sendo menos freqüente o contato gênito-genital ou gênito-anal.


HIAGAIL (2001) diz que a Pedofilia é uma doença pouco conhecida. Quanto ao perfil do pedófilo acrescenta que a maioria destes, escolhe uma profissão em que estejam em contato direto com crianças ou adolescentes. São professores, médicos, e até padres (...). As pessoas com essa doença são inteligentes, sabem estar comentando atos condenáveis, mas não denota o menor traço de desequilíbrio. Mas por mais discretos e cuidadosos que sejam sempre deixam uma pista, onde mais cedo ou mais tarde serão descobertos.

CAMPOS (2003) quanto aos aspectos que caracterizam o pedófilo explica que, geralmente, são indivíduos de baixíssima estima, uma imaturidade emocional que a pessoa tem a necessidade de compensar sentindo-se superior, dominante. Como ela não consegue isso com o adulto – porque teria de estabelecer uma relação de igual para igual – realiza a sensação de poder relacionando-se com a criança. E ai não importa se menino ou menina importa se é criança. Pessoas que desenvolvem esse distúrbio, quase sempre sofreram rejeições ou abuso sexual, não reconhecem mal no que fazem, (...), priorizam o sexo oral, procuram não provocar lesões físicas aparentes e praticam uma violência psicológica, muitas vezes irreversível.

Na opinião de BAPTISTA (2003) na maioria dos casos os pedófilos têm idade que varia entre os 30 e 40 anos, muitos dos quais são alcoólatras ou portadores de alguma psicose. Geralmente, possuem convicção religiosa, apresentando maturidade e solidão. Acrescenta que os pedófilos mais perigosos são aqueles em quem a criança confia, como um amigo da família, um dos empregados da casa, ou aquele que a criança idealiza por suas funções, como por exemplo, um técnico de futebol, um professor, um ministro religioso, ou seja, pessoa que tenha função ou autoridade.

Como se vê o grau de risco é que, na maioria dos casos, muitos indivíduos que são vistos como referência (principalmente nesta fase em que os jovens buscam valores que não influenciam na formação de sua personalidade) por parte da criança ou do adolescente são os que praticam esse tipo de violência. Portanto o mau muitas vezes esta mais próximo do que se imagina.

Mas o que é violência? Para a Associação de Psiquiatra Americana, (American Psychiatric Association, 1987), o DSM-III R, é um fato traumático (incluindo a violência é definido como um acontecimento que vai alem da categoria das experiências humanas habituais e que geraria desassossego marcante em praticamente qualquer pessoa), tal como uma ameaça ou risco de vida ou integridade física, uma ameaça seria ou dano aos filhos, cônjuge, parentes próximos de amigos; destruição súbita do lar ou da comunidade ou presencia o dano ou a morte de outra pessoa como resultado de acidente ou violência física.

A partir das distinções conceituais apresentadas vale chamar atenção para o fato de que no caso da Pedofilia Virtual a violência se reproduz de maneira peculiar. Isso significa que o tipo de violência sexual em destaque se manifesta desde o momento em que o menor esta sendo induzido (aliciado) pelo Pedófilo a ser fotografado; até o momento em que estas imagens passarão a circular a ser divulgadas (por meio dos chats e correios eletrônicos) com muita facilidade nos milhares de sites pornográficos existentes na rede.
EFEITOS PESICOLÓGICOS NAS VÍTIMAS

A Pedofilia Virtual é antes de tudo a consumação de toda a violência praticada no mundo real. A divulgação das imagens constitui um posterior, servindo apenas como um incentivo à banalização da Pedofilia como comportamento normal – apenas uma questão de opção.

Estudos, desenvolvidos no mundo cientifico por especialistas de diversas áreas (Sexólogos, Psicólogos, Psiquiatras, etc), admitem que tal prática longe de serem banais, tão pouco poderão ser aceitas como práticas normais ou comportamentais Sadias. Seus efeitos podem causar danos irreparáveis no individuo que foi violentado, produzindo marcas profundas durante toda sua existência.

Em seu artigo Abuso Sexual Infantil e suas conseqüências em longo prazo. ALMEIDA (2003) demonstraria que as vítimas de abuso sexual ao procurar tratamento enfrentam três tipos de problemas que se relacionam entre si:

* Sentimento de culpa;
* Sentimento de autodesvalorização;
* Depressão.

Aponta que suas relações interpessoais sofrem interferências significativas, pois a violência sexual geralmente acontece no seio dessas relações. As vitimas costumam apresentar as seguintes dificuldades:

* Recusa no estabelecimento de suas relações no campo amoroso;
* Seus relacionamentos são transitórios;
* Apresentam uma tendência a supersexualizar essas relações (promiscuidade sexual e prostituição).

ALMEIDA (2003) ainda observa que no que se refere ao processo de adaptação sexual, essa promiscuidade sexual está diretamente ligada ao medo de intimidade com uma supersexualização das relações com os homens ou ainda uma percepção masoquista experimentada pela vítima na infância (...). Entre as vítimas que sofrem abuso sexual na infância, existe uma tendência a supersexualizar as relações e isto ocorre devido a uma dificuldade de diferenciar relação sexual de afeto, pois acabam confundindo amor parental com sexo.

Mediante o resultado das várias pesquisas citadas e que focam os efeitos perversos de tal violência, fácil é imaginar as marcas profundas que essas vítimas carregarão para o resto de suas vidas.

Kaminsk (2003) aduz que segundo estatísticas apresentadas pela deputada Maria do Rosário em maio deste ano remetem a dados preocupantes. A Interpol com sede em Madri, fez chegar a Policia Federal brasileira a indicação de 272 sites, com origem no Brasil, nos quais são exibidos fotografias de adultos explorando sexualmente crianças e adolescentes. E que com convênio entre o Ministério Público do Rio Grande do Sul, por meio de protocolo de cooperação técnica, o Ministério Publico Federal, a Interpol, a Policia Federal e outros organismos, revelou que em 2002 houve 1245 denúncias de páginas de pedofilia na Internet. De janeiro a 31 de maio do corrente ano houve 401 denúncias de páginas acessadas em que as vítimas eram crianças e adolescentes.

O deputado Pompeu de Matos (PDT-RS) em entrevista cedida a Revista Consulta Jurídica em maio de 2003 defende que o sigilo não pode ser manto para encobrir criminosos, demonstrando a sua indignação com a liberdade arbitrária de maus carateres que se valem do anonimato no ambiente virtual para atingir os seus propósitos.

O deputado revelou que várias denúncias chegam constantemente ao Ministério Publico determinando investigações que tem por escopo identificar a pessoas que estão abastecendo a rede com material de pedofilia. Citou que investigações do MP-RJ resultaram na apreensão dos equipamentos de 27 internáutas do Estado, utilizadas para a troca de imagens pornográficas de crianças e adolescentes, destacando dentre os usuários médicos, estudantes de medicina, geólogos, contadores, empresários e de um pastor evangélico. Observa que a maioria dos infratores pertence à classe média e residem em zonas privilegiadas da cidade


SOLUCÕES
Ao reconhecer o crescente número de infrações cometidas no mundo virtual, o Poder Legislativo elaborou o Projeto de Lei do Senado n. 279 de 15/07/2003 com o objetivo de servir como um dos instrumentos legais que servirão para frear o avanço da impunidade relacionada a crimes virtuais dentre os quais a pedofilia virtual.

Este projeto dispõe sobre o cadastramento dos usuários de serviços de Internet e disponibilização de dados à autoridade policial e dar outras providências.
O Congresso Nacional decreta:

Art. 1 – Ficam obrigadas as empresas provedoras de serviços de Internet a cadastrarem todos os usuários de serviços de acesso à Internet e hospedagem de web e sites pessoais.

Parágrafo Único – O cadastramento previsto no caput, desse artigo, inclui os usuários dos serviços de internet e hospedagem gratuita.

Art. 2 - Os dados cadastrais dos usuários dos serviços de Internet serão disponibilizados à autoridade policial, sempre que for solicitado.

Parágrafo Único – O não atendimento no disposto no caput, deste art. 2, configura crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal.

Pena: detenção de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, e multa.

Art. 3 – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

O projeto de autoria da senadora Marina Silva (licenciada), atual Ministra do Meio Ambiente, com a aprovação do senado em outubro de 2003 que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente no art. 241 em sua redação amplia a pena que ficará sujeita de 2 (dois) a 6 (seis) anos de reclusão e multa, ficando vedado, inclusive, oi uso de iniciais do nome e sobrenome dentre outras alterações.

Essas modificações constituem progressos significativos no âmbito jurídico que ilustram a sensibilidade de muitos juristas e parlamentares engajados ao comprometimento social do país, cujos frutos poderão ser colhidos de médio a longo prazo, conforme inibam a proliferação atroz dos crimes praticados no ambiente virtual no que pertine ao objeto deste trabalho.

CONSIDERACOES FINAIS
Face às transformações por que passa a sociedade contemporânea é que o mundo jurídico é conclamado a (re) pensar as normas penais existentes para que estar constantemente atualizados acerca das novas feições criminais que velhos ( ou novos) atores do submundo do crime passam a explorar com o advento da Internet.

Destarte, fica evidente que é árduo o caminho a ser vencido para sanar os conflitos relativos a Pedofilia no ambiente virtual. Pedofilia é crime, e, como tal, as entidades legalmente instituídas para preservar a segurança da dignidade da pessoa humana não poderão ficar imóveis, alheias a abserväncia dessas novas feições do crime.

Dentro da perspectiva apresentada toda a sociedade precisa assumir uma postura consciente acerca da sua responsabilidade em cooperar (e exigir) junto às autoridades e órgãos competentes, providências no intuito comum de conter e punir a atuação desses delinqüentes. Denuncie!!!

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O caso Saddam Hussein e a Convenção de Genebra


Andréa Mesquita

Jornalista e advogada. Atualmente, faz doutorado em Direito Constitucional na Universidade de Salamanca (Espanha).

Inserido em 11/2/2007

Parte integrante da Edição no 216

Código da publicação: 1750





A pena de morte imputada ao ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, e executada no último dia 30 de dezembro, gerou muitos questionamentos dentro da comunidade internacional quanto à legalidade de seu processo judicial e, principalmente, quanto à forma como foi cumprida sua sentença.

Imagens e fotos de seu enforcamento foram divulgadas pelos cinco continentes, através de gravações feitas por telefones celulares introduzidos “clandestinamente” no patíbulo, o que transformou os últimos momentos de vida de Saddam Hussein em um espetáculo de horrores com alto teor de vingança que destoa do tom solene e grave que deveria caracterizar uma execução à pena de morte.

Quase em tempo real, as pessoas puderam presenciar em seus lares todos os detalhes de seu enforcamento, como se fosse um capítulo a mais da longa tragédia a que o Iraque está submetido desde 20 de março de 2003, quando as tropas lideradas pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha, invadiram aquele país.

Desde então, a televisão tem sido a grande protagonista desta guerra, em ambos os lados. Tanto as cadeias de televisão norte-americanas quanto a televisão estatal iraquiana apresentam diariamente os fatos relacionados com os conflitos no Iraque, em noticiários que nem sempre se esmeram na imparcialidade e objetividade que devem prevalecer no trabalho jornalístico. No entanto, a presença dos meios de comunicação tem provocado um forte impacto na opinião pública dentro e fora das fronteiras iraquianas, pois não somente mostram a realidade crua dos enfrentamentos e atentados ocorridos diariamente, como também são instrumentos eficazes na delação dos abusos cometidos pelos militares aliados nas prisões sob comando estadunidense.

Desde o início da contenda, foram constantes os bombardeios mediáticos de informações e imagens que, na maioria das vezes, foram repassadas ao público sem qualquer respeito às normas internacionais de direitos humanos, apesar de representar uma quebra dos preceitos da Terceira Convenção de Genebra (1949), destinada à proteção geral tanto de vítimas como de prisioneiros de guerra.

A Terceira Convenção, em seu artigo 12, responsabiliza o país invasor pelo tratamento dado ao prisioneiro de guerra. Além disso, o artigo 13 obriga que se dê proteção em tempo integral aos prisioneiros para que não sofram qualquer ato de violência ou intimidação; não recebam insultos; ou ainda, sejam motivo de curiosidade pública. Atualmente, nenhum desses dispositivos vem sendo respeitado pelas autoridades norte-americanas, embora estas tenham sido extremamente críticas com relação às imagens divulgadas de seus soldados detidos por grupos armados rebeldes ou, em outros casos, com a cobertura jornalística dos caixões enfileirados, cobertos pela bandeira americana, que guardavam os corpos de seus combatentes.

Donald Rumsfeld, secretário de Defesa norte-americano que comandou o ataque ao Iraque e deixou o cargo em novembro do ano passado, foi, sem dúvida, o principal alvo de uma série de críticas quanto aos métodos adotados no Iraque para a custódia de prisioneiros de guerra.

Enquanto as forças militares americanas estavam sob seu comando, revelou-se o escândalo envolvendo a prisão de Abu Ghraib, nos arredores de Bagdá, que foi usada como locação para cenas de tortura e maus-tratos de prisioneiros iraquianos pelas forças do Exército americano. Fotos e vídeos dos abusos cometidos chegaram à imprensa em 2004 e imediatamente foram divulgados, chocando a opinião pública. Antes disso, Rumsfeld já havia descumprido a Convenção de Genebra ao autorizar filmagens e fotografias dos corpos de Uday e Qusay, filhos de Saddam, mortos pelas tropas americanas em um tiroteio em julho de 2003.

Vários organismos internacionais como Human Rights Watch e Anistia Internacional têm denunciado a violação constante das regras internacionais de defesa dos direitos humanos. Também se manifestaram contrários aos procedimentos judiciais em curso no Iraque e críticos quanto à falta de informações de caráter público acerca do julgamento de Saddam e seus colaboradores.

Segundo notas oficiais distribuídas por essas duas organizações humanitárias, o julgamento realizado pelo Alto Tribunal Penal Iraquiano contrariou as normas internacionais sobre julgamentos justos. O juízo, dizem as entidades, foi viciado do começo ao fim por falhas procedimentais e substantivas que comprometeram a independência e a imparcialidade do Tribunal. Criticou-se a condução do processo, a proteção às testemunhas e aos advogados de defesa[1], a falta de acesso da defesa às provas e a forte interferência e manipulação políticas sofrida pelos juízes.

Para Malcolm Smart, diretor do Programa para o Oriente Próximo e Norte da África da Anistia Internacional, “o julgamento de Saddam Hussein deveria ter servido como contribuição básica para o restabelecimento da Justiça e da Verdade, para que prestasse contas das violações contra os direitos humanos perpetradas durante seu governo. Contudo, o que se viu foi um julgamento pleno de falhas. Muitas pessoas guardarão a impressão de um julgamento que corresponde apenas à ‘justiça do vencedor’, e não como marco para a erradicação da onda de homicídios políticos que se alastrou no Iraque”[2].

Embora contasse com uma cobertura jornalística sem precedentes na história das recentes democracias mundiais, com a transmissão ao vivo de toda a fase oral do processo propiciada pela TV estatal iraquiana, o julgamento não cumpriu as expectativas de ordem legal[3], por assim dizer. Houve transparência televisiva, mas faltou outro ingrediente fundamental à formação da opinião pública em uma ordem democrática: o respeito das instituições aos direitos fundamentais e ao devido processo legal.

No entanto, para o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, a execução de Saddam Hussein à forca – como declarou recentemente à imprensa – foi um “marco” importante na trajetória do país para se tornar uma democracia governada pelo império da lei.

Não é fácil descobrir a que tipo de “democracia” ele se refere, mas certamente esta é bem diferente da idealizada pelos defensores do Estado de Direito, que desde o final do século XVIII já exigiam a realização do devido processo legal, com respeito pleno à dignidade humana e a aplicação da lei com todas suas garantias. E não um espetáculo ameaçador e aterrorizante como foi visto por telespectadores de todo mundo[4].

Como foi dito anteriormente, além das irregularidades detectadas ao longo do julgamento, a fase final trouxe ainda outros pontos polêmicos que, se não são ilegais, no mínimo, são inconvenientes, considerando-se o momento delicado no qual se encontra o Iraque. A escolha da data da execução em pleno feriado religioso para os muçulmanos[5] e os insultos proferidos ao condenado durante seu enforcamento[6] – que foram registrados por testemunhas através de telefones celulares e divulgados pela Internet – mostram a falta de compromisso com o princípio de legalidade que deve imperar num Estado de Direito. As fotos e o vídeo piratas fazem a execução parecer mais uma vingança sectária ao invés de um ato determinado pela Justiça.

Ademais, a força ocupante não pode se imiscuir da responsabilidade que tem sobre o tratamento dispensado a seus prisioneiros de guerra mesmo quando estes são entregues à custódia das autoridades judiciais do país ocupado. Afinal, Saddam estava preso sob esta condição e deveria ter sido acompanhado por observadores norte-americanos no momento de seu enforcamento, como regem o estatuto de prisioneiros de guerra e as normas internacionais[7].

Portanto, as deficiências do julgamento e a inadequação do cumprimento da sentença macularam a imagem da Justiça iraquiana e comprometeram, sobremaneira, a credibilidade de futuros juízos que estão em andamento.

Além disso, a morte de Saddam Hussein antes da conclusão dos diversos processos a que responde, impede, assim, a revelação da verdade sobre o que ocorreu durante seu governo e inviabiliza o acesso de todos os iraquianos a possíveis versões sobre seu recente passado histórico, para que cada um pudesse analisar os fatos e tirar suas próprias conclusões a respeito. Seria uma excelente oportunidade para que o Alto Tribunal iraquiano demonstrasse aos cidadãos do país que pode julgar com autonomia e que seus julgados merecem a confiança das comunidades iraquiana e internacional.
Notas:

[1] Três advogados de Saddam Hussein foram assassinados durante o processo. Saadoun Nasouaf al-Janabi (ou, Saadun Ansar Nazif al-Yenabi como vi em outra citação), Adel al-Zubeidi e Khamis al-Obeidi,

[2] Comunicado à imprensa, divulgado no dia 30 de dezembro de 2006 pelo site http://www.br.amnesty.org com o título “Iraque: A Amnesty International deplora a execução de Saddam Hussein”.

[3] O julgamento de Saddam Hussein foi comparado, em importância e magnitude, aos julgamentos de Nuremberg (Alemanha), como ficaram conhecidos os processos levados a cabo pelos aliados, pós Segunda Guerra Mundial, contra as principais figuras do regime nazista. Os julgamentos aconteceram entre 1945 e 1949 e os acusados, em sua maioria, foram condenados por crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

[4] Ver a obra do filósofo e historiador francês Michel Foucault – “Vigiar e Punir” – na qual demonstra o tratamento dispensado ao criminoso ao longo da evolução humana. Ele divide seu livro em quatro partes: suplício, punição, disciplina e prisão e, em todas elas, mostra como as mortes tinham o caráter de espetáculo ameaçador e aterrorizante perante o condenado e perante a sociedade.

[5] A pena de morte foi executada no primeiro dia do feriado de Eid al-Adha: período de perdão e clemência na religião muçulmana que dura quatro dias. Segundo os funcionários do governo iraquiano, Saddam morreu antes do amanhecer de sábado (dia 30 de dezembro), antes, portanto, do começo oficial do feriado.

[6] Um vídeo mostra Saddam sendo provocado por testemunhas xiitas e seus carrascos durante a execução, apesar dos apelos do promotor de Justiça do caso para que respeitassem o condenado. Muitos especialistas da imprensa árabe afirmam que a gravação faz a execução parecer uma vingança sectária ao invés de um ato determinado pela Justiça.

[7] Principalmente porque a execução foi efetuada em uma base militar estadunidense localizada na “Zona Verde”: área que serviu de sede do serviço secreto iraquiano e que foi palco de torturas e outras atrocidades cometidas pelo regime de Saddam Hussein.